Uma cidade de estudantes: a experiência secular de Ouro Preto
Otávio Luiz Machado*
A cidade de Ouro Preto completou mais de 300 anos de existência. É uma cidade em que convivi há mais de 100 anos com uma vida estudantil singular, que é identificada nas casas conhecidas como “repúblicas”, nas festas tradicionais lideradas por estudantes e na presença constante dos jovens em todos os cantos da cidade.
Uma parte dos imóveis que foram praticamente abandonados após a transferência da capital para Belo Horizonte – que se tornaram fartos no final do século XIX e início do XX – foram ocupados por diversos estudantes de Ouro Preto que, além de contribuir para sua conservação, também permitiu o começo da formação de uma imagem de “cidade de estudantes” à antiga capital.
O início da organização de um sistema de “repúblicas” com imóveis permanentes para os estudantes ocorreu nos anos 1930, quando o Diretório Acadêmico da Escola de Minas empreendeu intercâmbio com a Casa do Estudante do Brasil, cuja sede era no Rio de Janeiro. Como providências tomadas pela Casa do Estudante do Brasil à iniciativa dos estudantes de Ouro Preto, foi construído um projeto para a cessão de casas aos estudantes, mas dentro de um processo muito vagaroso, conforme ofício datado de 9-3-1938, que foi assinado pelo Secretário Geral da Casa do Estudante (Nelson Ferreira):
“Comunica que, embora esteja empregando todo o empenho para cooperar na campanha pela Casa do Estudante de Ouro Preto, ainda não conseguiu a audiencia pedida ao sr. Presidente da República, e aguarda que ella seja marcada para fazer entrega dos documentos desse Directorio em favor util e generosa iniciativa”.
Os estudantes também tiveram presença no debate sobre a regulamentação da profissão do Engenheiro (de 1933), no debate educacional do Estatuto das Universidades Brasileiras (de 1931) e na melhoria do ensino na principal instituição educativa da época, que lhes rendeu uma importante homenagem num dos jornais da época:
“Em Ouro Preto não se dá o estacionamento. Tanto na Escola de Pharmacia como na grande Escola de Engenharia, reina, o anno inteiro, a disposição, a harmonia, a persistencia, a actividade laboriosa e empreendedora de uma colmeia. Ouro Preto é uma colméia, a esplendida colméia intellectual e juvenil do nosso paix. Já não é a primeira vez que aquelles moços dão exemplo de trabalho e de brio aos governantes de nossa terra! Já no anno passado, creio, ouviu-se o grito de alarme dos estudantes da Escola de Minas contra a invasão de professores sem concurso, ocupando as cadeiras da Escola. Depois o protesto vehemente contra a despresivel promoção por “decreto”. E foi sempre assim, sempre que o commodismo utilitarismo e a cegueira dos que “mandam”, pretendem aviltar a e desmoralizar a classe estudantina, lá vem o protesto vehemente, conformante daquelle pugillo de moços, conscientes e briosos do que fazem” (Artigo “Os estudantes de Ouro Preto”, jornal “A Imprensa”, 09-12-1934, assinado por A.M.A.C.)
A versão completa do artigo está em: http://exalunosdeouropreto.blogspot.com/2010/03/artigo-os-estudantes-de-ouro-preto.html
Na década de 1930, como ainda é pouco divulgado, os estudantes ainda fundaram a Revista da Escola de Minas (que é uma das primeiras revistas científicas do Brasil desde 1936), a Sociedade Excursionista Espeleológica (que ajudou a difundir a nova ciência no Brasil desde 1937), o Diretório Acadêmico da Escola de Farmácia (de 1931) e o Diretório Acadêmico da Escola de Minas (de 1931), sem falar na recuperação do Centro Acadêmico de Ouro Preto (fundado em 1915).
Foi também uma década marcada pela fundação ou consolidação de várias repúblicas estudantis que ainda existem nos dias de hoje, como a Arcá de Noé, Consulado, Canaan, Castelo dos Nobres e Vaticano, assim como pela intensa divulgação de Ouro Preto como “cidade dos estudantes”.
Um dos maiores divulgadores dos estudantes foi o magnífico escritor Manuel Bandeiro. Incluindo a vida universitária no seu famoso “Guia de Ouro Preto” (1938), Bandeira escreveu um texto intitulado “de Vila Rica de Albuquerque a Ouro Preto dos Estudantes”, que incluí os estudantes na própria história de Ouro Preto.
“Não se pode dizer de Ouro Preto que seja uma cidade morta. Morta é S. João d´El-Rei. Ouro Preto é a cidade que não mudou, e nisso reside o seu incomparável encanto (...) Em Ouro Preto ainda se recorda a sua elegância impecável, o requinte das suas roupas e das suas maneiras. No seu tempo a cidade vivia ainda com um certo brilho mundano que a mudança da capital arrebatou. Hoje ela é a cidade dos estudantes. São êles que lhe dão vida e animação. Depois do jantar descem o rapazes das Lages, onde as repúblicas alternam com os casebres das mulatinhas besuntadas de rouge e pó de arroz, e vêm cruzar as calçadas e encher os cafés tão simpáticos da rua de S. José. Está claro que as mocinhas da cidade estão por alí também, passeando de braço dado. Naturalmente que se namora... Não há mais ouro, mas ainda lhe resta à Imperial cidade essa outra coisa mais preciosa que o ouro - mocidade, sorriso da velhice da Vila Rica de Nossa Senhora do Pilar” (BANDEIRA, Manuel. “De Vila Rica de Albuquerque a Ouro Preto dos Estudantes. In: Crônicas da Província do Brasil”, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1937, p. 9-32).
Dez anos depois, a escritora Rachel de Queiroz também publica texto que manteve opinião semelhante à de Bandeira. O registro de uma viagem sentimental de uma das nossas principais escritoras a Ouro Preto, nos anos 1940, também não deixou esquecidos os estudantes da cidade, que até hoje não passam desapercebidos por qualquer turista:
“E no meio das pedras mortas e das casas vazias, vereis por tôda parte os estudantes de Ouro Prêto subindo e descendo as ladeiras, enchendo os cafés, tão anacrônicos e ao mesmo tempo tão bem situados naquela cidade que é sua, quanto a passarinhada da serra que faz algazarra nos beirais das velhas igrejas; ouvireis suas serenatas e seus discursos filosóficos, e depois no ar frio da serra a lua subir, iluminando as tôrres redondas de São Francisco, o Alto da Fôrca e o Morro da Queimada, e sentireis que o mundo não são apenas aquelas loucas cidades onde vivemos, não é só competição, dinheiro ou política, mas também êste silêncio, esta beleza, esta paz” (QUEIROZ, Rachel de. “Ouro Preto”. In: O Cruzeiro, 01/05/1948, p. 90).
Os estudantes, que foram fundamentais para manter a cidade viva desde a transferência da capital de Minas Gerais (em 1897), portanto, começam nos anos 1930 a construir um sistema de repúblicas com imóveis permanentes que favorece a criação da imagem de “cidade de estudantes” à Ouro Preto.
Os primeiros resultados do protagonismo estudantil só começam a aparecer nos anos 1940, com a criação da Casa do Estudante de Ouro Preto, seguida da Casa do Estudante da Escola de Minas nos anos 1950, da compra sistemática de casas para repúblicas nos anos 1960.
Nos anos 1960, a preocupação com a expansão da educação superior foi assunto relevante tanto na gestão de João Goulart, quanto de Castelo Branco. As suas políticas públicas projetavam que, em 1970, o Brasil estaria recebendo, na educação superior, 50% dos estudantes que concluiriam o grau médio em 1969, bem como manteriam 30% dos professores e estudantes em regime de tempo integral, metas que não foram alcançadas.
Em Ouro Preto, a falta de moradia foi discutida pela congregação da Escola de Minas em 1962, pois, sem a resolução deste problema, analisava-se de que não haveria possibilidade da vinda de novos estudantes e professores, o que significava o estagnamento da instituição.
No ano seguinte, este debateu ocorreu também na Comissão de Administração da Escola de Minas, e um dos debatedores, o Prof. Joaquim Maia, lamentava que a Congregação da Escola estivesse insensível ao seu apelo no sentido de crescimento do número de estudantes, e discordava dos seus colegas que argumentavam que "Ouro Preto não dispõe de alojamentos suficientes e condignos para maior número de professores e alunos” (Atas da Comissão de Administração da Escola de Minas, em 03 de setembro de 1963).
O debate permitiu o surgimento de medidas concretas a partir de 1965, com a apresentação do anteprojeto da obra de construção da “cidade universitária da Escola Federal de Minas de Ouro Prêto”, pelo escritório técnico do famoso arquiteto Sérgio Bernardes, feito a pedido da Fundação Gorceix, em parceria com a Escola de Minas, e que previa também a construção de moradia para estudantes. As obras ocorreram em seguida, mas passaram por problemas em decorrência do não cumprimento de normas do Instituto do Patrimônio. Da mesma forma, surgiu o debate sobre a transferência de todas as “repúblicas” para a cidade universitária que estava sendo construída, retirando todos os estudantes do convívio com a cidade, algo que não foi adiante, pois se teve a compreensão de que os estudantes também eram parte importante do conjunto da cidade de Ouro Preto.
Em 1969, com a criação da UFOP, a expansão do número de alunos de Engenharia e Farmácia foi natural, assim como a compra de mais residências para estudantes (com a reforma em diversos imóveis danificados).
Também houve um forte embate do Diretório Acadêmico da Escola de Minas (DAEM) com a reitoria no período. Os estudantes consideravam como princípio primordial a própria seleção dos moradores das repúblicas, justificando que
“a escolha dos novos colegas é de inteira competência e interesse dos elementos veteranos, com que conviverão, não cabendo, portanto, interferência de elementos alheios a estas pequenas comunidades. A convivência entre seres humanos não pode ser imposta” (Ofício DAEM, de 23 de novembro de 1971).
Foi em plena ditadura civil-militar que a afirmação de princípios irretocáveis da vida estudantil foi objeto de luta dos estudantes, bem como aconteceu as piores atrocidades em nome da “democracia”: a invasão de repúblicas por militares e civis, prisões, torturas, preconceito e intimidação aos estudantes.
Outro importante movimento foi dado com a construção de casas no campus universitário nos anos 1980, que foi fruto da luta do movimento estudantil, também.
Com a ampliação do número de vagas da UFOP, nos anos 1990, a ocupação de imóveis particulares explodiu, e com ele o aumento significativo dos conflitos entre estudantes e os moradores antigos da cidade.
A UFOP continua a se expandir nos dias de hoje, seja em Ouro Preto, seja em campus pelo interior do Estado, mas é difícil que a tendência de crescimento sofra grandes abalos nos próximos anos.
A instalação de vários campi avançados da UFOP pelo interior de Minas Gerais talvez seja a hipótese mais provável para o crescimento da UFOP. A cidade-sede certamente terá crescimento reduzido se comparado com as outras cidades.
Se houver dificuldades da cidade em apoiar o crescimento da UFOP - e continue a implacável campanha contra a instituição via perseguição aos estudantes das repúblicas estudantis federais –, o mais provável é que o seu crescimento ocorra em sua grande parte fora das fronteiras de Ouro Preto. A população oriunda de camadas econômicas disprivilegiadas certamente terá muito a perder.
Anos atrás conversei com um reitor de uma das principais universidades brasileiras sobre a questão das moradias estudantis. Ele não hesitou em dizer que se tivesse uma verba de um milhão de reais não investiria em moradias universitárias, mas a usaria para abrir uma extensão de sua universidade em outras cidades. A interiorização é uma tendência. Ao invés de sair suas cidades, os estudantes cada vez mais terão chances de estudar em sua própria cidade.
Ouro Preto dificilmente perderá a fama de cidade estudantil, mesmo que o número de repúblicas permanentes da própria universidade a cada dia esteja inferior ao número total de outros tipos de moradia, o que aumentará a pressão para que os estudantes desocupem os imóveis do centro histórico ou transformem os imóveis em alojamentos sem identidade e padronizados.
Não nos causa estranheza a impossibilidade de algumas pessoas – que ameaçam atualmente as repúblicas – de convivência com os estudantes no mesmo ambiente, de respirar do mesmo ar e de trabalhar de forma coletiva para o crescimento da cidade.
Também é muito estranho que o critério socioeconômico seja novamente posto como a solução da alocação das vagas nas repúblicas, bem como a forma de atender aos estudantes oriundos das camadas baixas, mas que desconsidera a particularidade de cada república, a autonomia conquistada pelo movimento estudantil, a aprendizagem extra-curricular, a relação singular com a sociedade, o interesse dos estudantes nesse tipo de moradia e a experiência acumulada bem sucedida ao longo de décadas.
O pior de tudo é ignorar a escolha da melhor moradia pelo próprio estudante. A instituição é quem faz o acompanhamento por meio de profissionais como de psicólogos, assistentes sociais, pedagogos e tantos outros, principalmente numa universidade que oferece diversas condições de moradias para seus estudantes.
A convivência entre estudantes de origens econômicas, sociais e culturais diversas é a razão de ser de uma república de estudantes e da própria Universidade. Acabar com as repúblicas é promover o enterro da história da própria instituição, é ignorar a luta dos estudantes para a conquista das casas e é uma ingratidão com os ex-alunos (que contribuíram com a conservação dos imóveis e apoiaram a cidade em diversas oportunidades).
Esperamos que os regimes autoritários não prosperem nunca mais. E que ao invés da padronização dos comportamentos e a redução das pessoas a meros servos (conforme o posicionamento de poucos), seja dado de fato espaço à diversidade, ao protagonismo, à irreverência e à criatividade dos nossos jovens como é inegavel nas repúblicas de Ouro Preto. Retroceder nunca, render-se jamais.
*Pesquisador do NEEPD-UFPE. Autor de “Repúblicas de Ouro Preto e Mariana: Percursos e Perspectivas”, “Repúblicas Estudantis de Ouro Preto: Trajetórias e Importância” e “Repúblicas Estudantis de Ouro Preto e a Construção de um Projeto de País” e “Movimentos Estudantis, formação profissional e construção de um projeto de país” e co-organizador dos livros “Movimento Estudantil Brasileiro e a Educação Superior”, Juventude e Movimento Estudantil: Ontem e Hoje” e “Movimentos Juvenis na Contemporaneidade”.
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