Otávio Luiz Machado*
Educação Superior, Repúblicas Estudantis de Ouro Preto e Compromisso Social
Otávio Luiz Machado*
Quando participo de debates ou escrevo sobre as repúblicas de Ouro Preto, o que mais me orgulha inicialmente é o de estar na condição de ex-morador da maior república da UFOP, bem como o de ter a minha formação universitária e pós-universitária realizada integralmente em instituições públicas.
A oportunidade única que tive de estudar a história das repúblicas, do movimento estudantil, da juventude e da educação superior
Mas ao olhar para trás como ex-aluno, além de perceber o quanto muitos de nós fizemos para a UFOP, a cidade de Ouro Preto e o próprio País, também preciso reconhecer os nossos erros, omissões e frustrações durante a vida republicana.
Não me arrependo de ter ajudado a organizar a campanha Solidariedade Ufopiana por dois anos, de trabalhar no Projeto Grupo Folclórico, de me envolver com o Programa Raízes da Terra, de ter sido premiado nacionalmente juntamente com a nossa equipe pelo Programa Universidade Solidária, de ter organizado eventos para beneficiar a cidade de Ouro Preto, de contribuir para manter a república que escolhi morar ou de divulgar as maravilhas da cidade a partir do local que sempre valorizei (o imóvel público que passamos e deixamos as marcas do nosso trabalho por todos os lados).
Eu diria que o maior erro das gerações passadas (incluindo a minha) foi o de não preparar as repúblicas adequadamente para o enfrentamento da exacerbação de preconceitos e perseguições que sofreriam no futuro, porque enquanto buscávamos uma moradia adequada – numa sociedade extremamente precária – , o que não percebíamos ao nosso redor era o crescimento das incompreensões que esse sistema de moradia acumulava em mais de um século de existência.
A nossa maior omissão esteve na manutenção da informalidade das repúblicas com as diversas instâncias da UFOP, porque a experiência universitária que tivemos nos levava a certeza de que sempre estávamos no caminho certo ao realizar um árduo trabalho na defesa do interesse público, que as gerações atuais compreenderam e abraçaram como meta em defesa de uma universidade pública, gratuita, de qualidade e referenciada socialmente.
Mais a maior frustração foi a de não contribuir adequadamente para que o conjunto de grupos sociais que contracenamos no dia-a-dia percebesse o seguinte: a autonomia universitária como a grande questão não enfrentada em profundidade pelas frustradas tentativas de reformas da universidade ao longo de décadas. O que fizemos foi insuficiente!
O que mais os escribas contrários às repúblicas tratam é do fim da autonomia das repúblicas. Mas se esquecem de tratar com o mesmo refinamento e dedicação a importância da autonomia das universidades, pois para eles é uma questão que precisa ser tratada apenas para trazer argumentos aos seus posicionamentos instrumentalizados.
Qual o motivo do silêncio, da pouca atenção ou da distorção do tema da autonomia da universidade? Como geralmente é um assunto que inevitavelmente será tratado diretamente com o Ministro da Educação, com os nomes fortes da burocracia universitária, com alguns sindicatos ou com os inúmeros lobbies das universidades privadas, aí eles se calam. Falar da juventude seguindo o rastro de intolerâncias abertos e amplamente pautados por alguns setores da imprensa é menos cansativo e chama mais atenção.
Pergunto: o que faziam os nossos escribas quando vários estudantes eram massacrados por defender uma reforma universitária aprofundada? De qual lado estariam se de fato estivessem interessados no aprimoramento da educação superior do nosso País? Qual o motivo de não se posicionarem na defesa do debate sobre a autonomia universitária a todo custo no Brasil?
É o caso de perguntar por quais razões os nossos “defensores” da democracia e da cidadania sumiram quando amplos setores da sociedade defendiam a abertura dos arquivos públicos, o direito à memória e à verdade. Ou ficaram calados quando o País busca criar mecanismos de aperfeiçoamento da Universidade ou defendem o ensino público.
Os mesmos argumentos contrários à efetivação da autonomia universitária como princípio básico no debate sobre a necessidade de transformações urgentes na educação superior acabam sendo utilizados para os que falam contra a corrupção no mundo político, mas se “esquecem” de colocar em primeiro plano a urgente necessidade de uma reforma política e jurídica. Os privilégios que indiretamente recebem tornam suas falas fáceis ou superficiais, pois mexer com as “estruturas” nunca interessaram aos que buscam aparecer de modo rápido e eficiente como cavaleiros do apocalipse.
É só olhar a biografia dos muitos que atacam gratuitamente as repúblicas federais. Daí saberemos os reais motivos para não destratarem dos verdadeiros interesses perversos e contrários ao ensino público brasileiro e se acovardarem diante de uma elite que quer as nossas universidades atuem apenas do ponto de vista mercadológico.
Se a sociedade brasileira evoluiu ao tratar as suas juventudes como cidadãos de direitos, com miopia de poucos é possível que a universidade perca o seu compromisso com as necessidades da realidade nacional.
Talvez a minha experiência como um pesquisador da história e da sociologia das juventudes brasileiras possa ser evidenciada aqui, porque apostamos na criatividade, no protagonismo e na maior abertura de espaços para que os jovens possam se expressarem e atuarem.
A juventude é um tema ainda pouco estudado no Brasil. Mesmo que os indicadores apontem para os jovens como os que possuem maior dificuldade de inserção social, os mais vitimizados pela violência urbana e a estejam cada vez mais sendo reconhecidos pela sua prática do consumo individualizado, o que não podemos também deixar de reconhecer são as condições de vida de crianças e jovens no nosso País em toda sua história.
A república estudantil de Ouro Preto é um dos pouquíssimos canais de expressão e de participação cívica de parcela dos jovens universitários, que pode ser reconhecido como um dos principais responsáveis pela relação da UFOP com a comunidade, pela constante manutenção dos imóveis do centro histórico e de outros bairros (que só não foram abaixo pelo trabalho árduo dos estudantes) e pela formação extracurricular de milhares de estudantes depois de formados atuaram ou atuam no que temos de melhor nos dias de hoje.
É assustador como a juventude do meu País (que resolveu estudar
Eles nunca foram inimigos da cidade. É só olhar quem estava e quem não estava do lado da população mais pobre da cidade em momentos de tragédia e de dificuldades. É só olhar quem estava e não estava defendendo um plano de preservação e de conservação do patrimônio histórico de Ouro Preto quando havia ameaças por parte de interesses pesados na sua destruição. É só olhar qual o nível de escolaridade e a faixa salarial dos que atuam e daqueles que não atuam em parceria com as repúblicas. Aí é possível ver quem se beneficia de fato das atividades propostas pelas repúblicas. Só aí perceberemos que as repúblicas não apresentam nenhuma ameaça, mas sim um elemento dinâmico e de interesse para a cidade de Ouro Preto (ontem e hoje).
É uma pena que mal iniciamos o século XXI e reapareceram discursos e ações próprios do período medieval. O massacre, o irracionalismo, o barbarismo, a intolerância, a agressão, o ódio e o preconceito apresentados por algumas pessoas só pode ser explicado pela presença de interesses pessoais ou familiares em jogo, sem falar na má fé dos muitos que atacam violentamente os estudantes e suas repúblicas simplesmente para ter publicidade em cima da própria UFOP.
Não podemos aceitar – num mundo em que muitos usam o nome de Deus para matar inocentes ou falam em nome da democracia para explorar as riquezas e a mão-de-obra de outros de outros países – que a violência seja estimulada sem a menor restrição.
Os estudantes estão conseguindo convencer no dia-a-dia que só o diálogo, o uso adequado do conhecimento acumulado pela humanidade e a prática efetiva de valores democráticos sejam capazes de solucionar qualquer questão do ponto de vista cultural, social e político.
Os atuais estudantes das repúblicas não estão seguindo o caminho errado. Dialogam abertamente com os moradores de Ouro Preto, com o Ministério Público, com a administração da UFOP, com os ex-moradores, com os demais estudantes da UFOP e com tantos outros que de uma hora para outra se tornaram interessados na questão.
Como escreveu o mestre: a boa reflexão é aquela que gera mudanças. E será longe do ódio, da intimidação, da intolerância e da violência que os estudantes refletirão sobre o seu futuro e honrarão a experiência acumulada bem sucedida que herdaram. ( A defesa dos estudantes e da própria instituição UFOP é tratada por mim mais muito mais como uma questão de Justiça. E não de Direito).
E como os rumos buscados para as nossas importantes repúblicas possuem como base os diversos documentos, orientações e falas que contribuem para pensarmos o futuro da humanidade, então podemos citar alguns apenas para esclarecer o assunto.
Não é segredo que a questão precisa ser tratada dentro do ponto de vista educacional, sem ódio e sem medo. É uma atitude covarde das pessoas que manipulam dados equivocados para agredir jovens estudantes que moram a um, dois, quatro ou cinco anos numa república, visando responsabilizá-los agora pelas incompreensões que esse sistema de moradia acumulou em mais de um século de existência.
Como não sabíamos que a pressão em cima das gerações que ainda podem reparar as nossas distorções seria tão implacável, então é preciso pensar que só os atuais moradores e os novos que ainda virão poderão dar sua maior contribuição. Uma chance aos jovens é urgente e necessária, pois diria a eles o seguinte:
“Não esperem nada do século 21, pois é o século 21 que espera tudo de vocês. É um século que não chega pronto da fábrica, mas sim pronto para ser forjado por vocês à nossa imagem e semelhança. Ele só será glorioso e nosso à medida que vocês sejam capazes de imaginá-lo” (Garcia Márquez, Paris, 1999).
A luta dos estudantes para a melhoria do ambiente educativo das repúblicas, a busca da manutenção dos prédios com a promoção de atividades que financiem uma parte dessas despesas e o envolvimento da sociedade naquilo que os próprios estudantes propõem como razoável encontram respaldo na própria Constituição Federal. O processo educativo não pode ocorrer sem a colaboração da própria sociedade, que também é responsável pela preparação das pessoas para o exercício da cidadania, do trabalho e do bem comum.
Na busca da melhoria das repúblicas, a tentativa de aperfeiçoamento constante das casas visando o estabelecimento de um compromisso com a formação profissional mais adequada aos moradores das repúblicas é um fato a registrar. E é um direito inscrito na Declaração Universal dos Direitos Humanos (de 1948): “Toda pessoa tem direito a uma educação de qualidade, que garanta o pleno desenvolvimento da personalidade humana” (Artigo 26).
Então não basta fornecer moradia gratuita aos estudantes, mas permitir que eles tenham acesso facilitado, permaneçam, aprendam, progridam e contribuam para que os próximos moradores possam crescer e contribuir para a sociedade, também. Para que isso ocorra, penso ser imprescindível que as repúblicas e a própria administração da Universidade trabalhem em conjunto, o que está sendo feito no momento.
Mas nem tudo pode ser tão animador quanto as falas de pesquisadores e dos documentos nacionais e internacionais produzimos na passagem do século (e de milênio).
Na “Conferência Mundial sobre Ensino Superior” da UNESCO, que foi realizada em Paris em 1998, foi tratada com destaque as expectativas de formação do universitário do século XXI. Eis algumas delas: de ser flexível e não se especializar demais; que invista na criatividade e não só no conhecimento; que aprenda a lidar com incertezas; que busca ter habilidades sociais e capacidade de expressão; que saiba trabalhar em grupo; que esteja pronto para assumir responsabilidades; que busque ser empreendedor e; que saiba de fato entender as diferenças culturais.
Foi um período fértil de idéias, como o documento “A educação: um tesouro está escondido em seu interior” (de 1996), que foi o resultado de um relatório da comissão internacional sobre a educação do século XXI.
Em palestra proferida na UFOP – após convite que fizemos em 1999 –, a Professora Barbara Freitag tratou das Perspectivas Educativas da UNESCO para o Século XXI. Numa exposição muito clara e marcada pela presença de diversos educadores de Ouro Preto, a nossa palestrante expôs as principais discussões que estavam ocorrendo no âmbito da educação pela UNESCO naquele momento, como o famoso relatório (de 1996), que naquele momento resumia os quatro pilares que deveriam reger a educação do futuro (conforme o resumo feito pela autora):
- Aprender a aprender: aprender coisas novas e aprender as mudanças que se processam no mundo (...) preservar o que é necessário, mas filtrar e aprender a desenvolver um mecanismo de aprender;
- Aprender a fazer: aprender a fazer coisas dentro das condições da sociedade moderna dada melhor ainda da sociedade do futuro;
- Aprender a viver com os outros: a aceitação do outro, que não entendemos, mas que precisamos compreender e aprender a respeitar em sua diferença;
- Aprender a ser: precisamos aprender a ser gente. Temos de aprender a viver nossa dignidade e a assegurar esta dignidade a todos os outros convivas.
O texto da conferência de Freitag foi publicado na Revista de História do Laboratório de Pesquisa Histórica da UFOP.
Nos mais diversos documentos da UNESCO também são contemplados o aprimoramento dos programas visando uma educação para toda a vida. Não só uma educação que nos ajude ao mesmo tempo a pensar a agir na resolução dos problemas da nossa sociedade, mas de uma educação não bancária e que vá além do simples acúmulo de conhecimento que possibilite a extração individual, mas que seja uma educação que nos permita adquirir habilidades para contribuir com o desenvolvimento da própria educação e o nosso país.
Na conferência Mundial sobre Ensino Superior, que foi realizada em julho de 2009 com o tema The New Dynamics of Higher Education and Research For Societal Change and development, reafirmou-se os diversos princípios dos documentos de 1996 e 1998, que já foram expostos acima.
Também foi fundamental outra palestra que organizamos em 2000. O Professor Michel Thiollent contribuiu muito com sua apresentação intitulada “Reflexões sobre a Condição Estudantil”, que publicamos como capítulo de livro na coletânea “Movimento Estudantil Brasileiro e a Educação Superior” (2007).
O Professor Thiollent focou num aspecto crucial para o entendimento da vida em repúblicas, como “os aspectos da condição estudantil que dizem respeito à transição da adolescência para a idade adulta, à aprendizagem social e cultural fora das salas de aula, à percepção das mudanças que ocorrem na participação política dos jovens na sociedade”, bem como a questão do individualismo e dos valores de solidariedade no que se refere aos comportamentos dos estudantes e às possibilidades de livre expressão.
Também não se deixou dúvidas sobre a aprendizagem propiciadas pelas repúblicas:
“Boa parte da experiência, em termos de sabedoria, consciência política, gosto cultural e valores, é adquirida de modo extra-curricular, nas conversas informais com colegas, nos bares, nas festas e, em caso de moradia coletiva, nos alojamentos ou repúblicas (...) Aprende-se muito nas universidades, como também aprende-se muito fora delas, nas ruas, nas praças, no centro, na periferia, no campo, conversando com colegas ou pessoas das mais diversas condições. A vida coletiva dos estudantes em repúblicas constitui um momento-chave de maior abertura para o mundo”.
Ao final de suas considerações, o Professor apontou para a ampliação das atribuições e atividades das repúblicas:
“As atividades intelectuais não se desenvolvem apenas como exigência curricular, mas como “projeto de vida”. Imagino que muitos estudantes de hoje, procurando promover formas de expressão cultural e dominar mecanismos da informação, poderiam, entre outros objetivos, pôr o seu conhecimento a serviço de iniciativas de cultura, formação e informação alternativas, em diversas áreas, sob forma de experimentações na vida social e cultural relacionadas com percepções do passado, do presente e com preocupações de futuro. Nesse sentido, o espaço de liberdade de expressão de que dispõem os estudantes universitários na organização comunitária das repúblicas poderia ser mais bem aproveitado e fortalecido por meio de uma mais efetiva inserção na cultura local”.
As falas de Freitag e Thiollent são muito significativas. Elas nos apontam para o aprendizado ao longo da vida, a importância da democracia como valor supremo e como a cidadania precisa ser construída, que são aspectos fundamentais quando pensamos em educação superior.
Em palestra na UFOP (2002), o Professor Elísio Estanque aceitou nosso convite para trocar experiências sobre as repúblicas de Coimbra e Ouro Preto. Como experiente Professor e Pesquisador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, também entendemos que a apresentação de suas experiências nos propiciou um belo exercício de reflexão sobre as repúblicas e os estudantes de Ouro Preto, porque ele é um estudioso do tema das juventudes no seu País.
Um primeiro aspecto da fala de Estanque que trazemos é a relação entre repúblicas e a cidade.
“Ouro Preto e Coimbra possuem em comum o fato de serem cidades universitárias marcadas o seu cotidiano pela presença da universidade e dos jovens estudantes universitários (...) Parece-me, quer Coimbra, quer Ouro Preto, que elas estruturam e reestruturam a sua identidade coletiva enquanto cidades por via da Universidade, por meio dos seus estudantes e pela própria projeção que a Universidade pode induzir”. “A cidade de Coimbra depende muito dos estudantes. A economia doméstica das famílias de Coimbra passa direta ou indiretamente pela presença dos professores, funcionários, estudantes etc”.
Para Estanque, as repúblicas em Coimbra recebem um tratamento digno por parte dos amplos setores da sua população:
“A relação da cidade de Coimbra com os estudantes é de acolhimento e aceitação. E há uma tolerância muito grande com o estudante. Não há de modo nenhum uma clivagem ou mesmo conflito, nem mesmo latente, entre a cidade e o estudante. Pelo contrário, a cidade recebe os estudantes e se orgulha de ser a cidade dos estudantes”.
Também destacou que o combate entre população e estudantes é muito perverso, advertindo que o respeito precisa ser mútuo:
“O divórcio entre cidade e universidade é negativo, particularmente em cidades como Coimbra e Ouro Preto. Porque a projeção da comunidade no mundo é a luta por reconhecimento. O que estamos a falar é a luta simbólica pelo reconhecimento que as comunidades buscam. Coimbra é conhecida principalmente pela sua universidade. No caso de Ouro Preto, pelo fato de ser patrimônio é uma vantagem enorme. E o fato de ser uma cidade estudantil também contribui para isso, porque se fosse uma cidade industrial seria mais difícil de preservar todo um ambiente paisagístico, arquitetônico e ambiental. Eu penso que as repúblicas que surgiram espontaneamente ao longo do tempo e tem o peso que tem e o significado social têm que ser mantidas, tem que ser reguladas, porque se tem irreverência também tem que haver limites”.
Como um dos educadores mais prestigiados de Portugal, o Professor Estanque também não ignorou a importância das repúblicas para a formação dos estudantes:
“Eu acho a questão das residências estudantis muito importante. E é uma forma do estudante ter sua aprendizagem social ao lado daquilo que aprende na sala de aula. Ele aprende a se relacionar com outros, e isso para mim é algo muito importante. Eu penso que isso poderia facilitar de fato a participação do estudante na vida cívica
O Professor Estanque também expôs sua opinião sobre a questão da tradição nos dias de hoje, mais uma vez focando na sua própria instituição, que já completou mais de setecentos anos de existência:
“As universidades e as cidades universitárias não podem mudar esse fenômeno irreversível da globalização. E as instâncias universitárias poderiam fazer muito mais do que fazem, porque é possível e desejável conciliar tradição com modernidade. E uma parte da Universidade de Coimbra vive só a olhar o passado glorioso e esquece que no presente vão surgir outras universidades mais dinâmicas. A Universidade de Coimbra precisa responder com iniciativas mais ousadas e mais modernas usando a sua própria tradição e a sua história como capital. Eu penso que tradição é fundamental. E Coimbra tem essa vantagem em relação às outras universidades. A questão é saber tirar daí o melhor proveito”.
Como um importante estudioso da experiência universitária, acredito que um dos pontos altos de sua fala foi definir com precisão o significado das “repúblicas”:
“A cultura juvenil e a irreverência estudantil tem muito a contribuir. A república é uma coisa fantástica. Se nos formos à origem do espírito das repúblicas nós iremos à Grécia e a própria origem da democracia. É a contradição ao individualismo. Essas civilizações, comandadas pelas grandes potências nos tem conduzido. A república é a obrigação da partilha, é aquilo que nos ensina a lidar com a diferença e tem um capital imenso. Um capital para a humanidade, mas também é um capital incrivelmente importante para a própria pessoa conseguir mais tarde uma colocação. Em qualquer emprego ou em qualquer atividade o trabalho em equipe é fundamental. Temos de aprender a conviver com as diferenças”.
Estanque também fez um importante comparativo entre as repúblicas de Ouro Preto e Coimbra:
“Eu diria, comparando as repúblicas de Ouro Preto com as de Coimbra, talvez em Coimbra elas tenham um significado simbólico maior, mas tem uma representatividade menor que as de Ouro Preto” (...) As repúblicas que existem
Enfim, o debate sobre as moradias estudantis
Mas o debate que está ocorrendo de forma sistemática sobre a questão da moradia desde 2006 precisa prosseguir e chegar a parâmetros mais razoáveis e rápidos. É preciso reconhecer os avanços, bem como estudar o que foi pensado anos atrás sobre a inserção da universidade na sociedade, também.
Como foi o caso do Seminário O Papel da Universidade Pública Brasileira (em 1994) nos 25 anos da UFOP. O então Reitor, o Professor Renato Godinho Navarro, dirigindo-se ao maior educador do nosso País, o Professor Paulo Freire, veio reafirmar o seu compromisso com uma universidade pública:
“Eu não tenho dúvida, olhando do ponto de vista do estudante, de que o estudante formado entre quatro paredes é um, e o estudante formado junto com os problemas da população é outro tipo de estudante, outro sujeito histórico, uma outra pessoa com outro conceito de cidadania”.
O Professor Godinho podia estar se referindo especificamente aos estudantes moradores de república, que de alguma forma pertencem ao maior trabalho de extensão da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).
Na ocasião, o educador Paulo Freire sabiamente teceu considerações sobre uma escola que permite o exercício glorioso da liberdade e a aventura de criar, bem como da briga pela superação dos problemas. E que o errar do jovem estudante seja de fato objeto de aprendizagem e reflexão. Mas nunca de repressão:
“Quando um aluno erra, eu o aplaudo, porque o erro mostrou que ele exercitou a curiosidade epistemológica. Tudo isso vai dando força aos que começaram timidamente a briga. Que continuem a briga, advertindo aqueles que têm medo. Essa briga vai terminar por afetar os impossíveis direitos, os injustos regalos, que vão começar a reagir, é claro, contra essa briga. É assim que a gente vai à luta diária, é assim que a gente vai viabilizando a luta (...) É preciso brigar , viver para brigar com os outros para que os outros façam, fabriquem essa cidadania. (...) “Então, exercitar a cidadania a cidadania, implica ter voz, discursar no sentido figurado que estou dando, metafórico. É o direito de romper, de optar, é o direito de brigar , de sonhar, é o direito de ter utopias (...) a juventude precisa conhecer as diferenças (...) Ninguém aprende só dentro de um ângulo, metido numa camisa-de-força. É preciso o diferente” (Palestra de Paulo Freire na UFOP, 1994).
O debate em torno destes documentos e das próprias falas indicam que não só que precisamos dar conta dos problemas antigos, como também precisamos apresentar as possíveis soluções para os problemas que surgem hoje e acabam se acumulando sem nenhuma resposta para o futuro.
Mas não acredito que as repúblicas não estão tão distantes do que pensam os especialistas e os próprios documentos. É com as palavras do maior educador do Brasil (que foi perseguido, incompreendido, expulso da Universidade, preso e exilado e por defender suas idéias em defesa de uma pedagogia do oprimido) que encerro o texto, colocando o seu conteúdo muito mais com o objetivo de incentivar os atuais moradores:
“Acho que a luta pela cidadania é de todo dia, de toda hora, é uma luta nossa. Tem que ser levada, tem que ser dada por nós (...) O grande trabalho do dominado é poder converter a força do opressor
Pois enquanto os estudantes tentam dialogar de forma aberta e fraterna com o Ministério Público, a administração da UFOP e os moradores de Ouro Preto para o encontro de caminhos para a melhoria das repúblicas, o que percebemos é a presença de outros setores que tentam destilar o seu preconceito e ódio contra os estudantes. Ou que querem jogar os estudantes em verdadeiros guetos, novamente sem argumentos factíveis.
Como pensava Paulo Freire, enquanto não formos sujeitos do nosso conhecimento e tivermos a capacidade de cavar a nossa própria liberdade e autonomia para vivermos a vida com dignidade, a chance de sermos oprimidos será muito maior.
O critério universal na seleção dos moradores das repúblicas é o que considero como o mais justo e adequado ao sistema de educação superior de Ouro Preto. Vamos aos argumentos.
O tema das moradias universitárias é uma questão em pauta desde os primórdios do ensino superior no Brasil, pois foi a primeira reivindicação de um grupo de estudantes da Faculdade de Direito de São Paulo (a primeira instituição no país) que tinham dificuldades de encontrar casas na cidade, mas que acabaram sendo atendidos com a criação de vagas para moradia nos cubículos de um mosteiro que abrigava a Faculdade, em 1830.
Outro momento importante foi a criação da UnB, no início da década de 1960, a primeira universidade fundada sem a junção de outras escolas e com a função de irradiar um modelo dinâmico de ensino superior ao que já existia, cujo projeto inicial era construir moradia para abrigar todos os seus alunos, no sentido de permitir-lhes o intercâmbio de experiências entre os diferentes.
Como o aperfeiçoamento de moradia estudantil da UFOP irá passar pela adoção de um sistema heterogêneo, pois é o estudante – assistido por setores da universidade – que sabe qual o melhor lugar para se morar durante o seu curso universitário e o quanto isso é fundamental para o seu sucesso profissional. E o quanto a sua formação abrangente é de interesse do País.
A opção de moradia em república irá continuar com a autonomia, responsabilidade, gestão própria e bem sucedida até os dias de hoje. O alojamento e quartos individuais também serão repensados, principalmente com a participação de profissionais como pedagogos, assistentes sociais, sociólogos e psicólogos na elaboração dos projetos.
Como sabemos que a linguagem autoritária reduz tudo a uma única voz, pois visa afastar o diálogo entre as pessoas justamente para criar guetos que interessam determinados grupos e não a sociedade como um todo, também sabemos que o mundo se transformou quanto mais dialogicamente as relações sociais se estabeleceram e a juventude teve espaço privilegiado.
As melhores universidades do mundo sabem respeitar a opção de moradia dos seus estudantes. É um assunto a ser tratado dentro de um projeto pedagógico institucionalizado, que é garantido pela autonomia das nossas universidades. No meu entender, o critério sócio-econômico não se aplica a nenhum dos modelos, pois é pedagogicamente recomendado que os próprios estudantes façam suas escolhas e aprendam o quanto antes a conviver com as diferenças. A imposição não é a solução, pois na educação dos nossos jovens, além do respeito, também precisamos entender que tratamos de seres não autômatos.
*Pesquisador do NEEPD-UFPE. Autor de “Repúblicas de Ouro Preto e Mariana: Percursos e Perspectivas” e co-organizador dos livros “Movimento Estudantil Brasileiro e a Educação Superior”, Juventude e Movimento Estudantil: Ontem e Hoje” e “Movimentos Juvenis na Contemporaneidade”.
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