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sexta-feira, 2 de abril de 2010

Trechos do livro de Maria Aracy Lessa. “ Ouro Preto do meu tempo”.

Trechos do livro de Maria Aracy Lessa. “ Ouro Preto do meu tempo”. Prefácio de Antônio Olinto. 2ª ed. (1ª ed. 1967). São Paulo: IBRASA, 1981.

DADOS DA AUTORA: Maria Aracy Lessa formou-se pela Escola Normal de Ouro Preto. Em 1916 foi nomeada professora adjunta da Escola Mista de Antônio Dias.

“Era muito diferente Ouro Preto no começo do século. Por volta de 1914 as moças pouco saiam de casa. Os homens se encontravam para falar de mulheres, tratar de políticas ou contar anedotas nas vendas ou armazéns que dispusessem de espaço para uma mesa e quatro cadeiras. Das que me recordo nesse gênero, havia uma na Rua do Ouvidor, do Coronel Netto, onde compravam cereais, lataria, bebidas; venda bem sortida para gente endinheirada. Lá se abancavam sob pretexto de pagar ou de comprar e, apesar do tamanho do ambiente, comendo presunto ou queijo, servidos por caixeiro ou pelo dono da casa, senhor de fino trato, grandes posses e boa prosa.
(...)
Quando pela primeira vez, se tornou obrigatória por lei votada pelo Congresso Federal a vacina contra a varíola, que de 1904 a 1906 originou a revolta dos quebra-lampeões, eu tremia apavorada quando batiam a aldraba da porta do corredor de nossa casa, pois muito sofreram minhas tias, todas professoras, obrigadas, sob pena de suspensão do cargo que ocupavam, e que era o seu único ganha-pão, a fazê-la executar.
Muitos pais não se conformaram com a obrigatoriedade da vacinação e as pobres professoras tiveram de passar pelos maiores vexames, porque tinham de escutar impropérios sem conta desses inconformados.
Houve certa vez até necessidade de Mana pedir um soldado para guardar a porta da escola em Antônio Dias, porque um desses truculentos pais ameaçou matá-la caso seu filho fosse vacinado.
Quando minhas tias contavam os padecimentos que sofreram como professoras pelo interior do Estado de Minas, em cidade opnde o diabo perdeu as botas, euj me arrepiava de pavor, pois as lutas entre o Partido Conservador e o Liberal eram de fazer medo.
(...)
Fiz o primeiro e o segundo ano normal em Mariana, no Colégio da Providência, educandário famoso, dirigido por irmas Vicentinas, entre as quais havia duas de Ouro Preto: Irmã Gabriela e Irmã Rosa – ambas professoras.
Com a criação da Escola Normal saí do internato e fui cursar o 3º ano nessa escola.
Conhecia o Francês bastante bem, língua bem cuidada com esmero pelas irmãs, na maioria francesas, o Português bem regularmente. Meus problemas eram Aritmética e Geometria.
Essas matérias eram dadas pelos livros de Albourt para o Francês, João Ribeiro para o português.
Aritmética de Trajano, Geometria de F.T.D. – nomes hoje desaparecidos no torvelinho de reformas de ensino e pelo aparecimento de novos didatas – é que não me entravam na cabeça.
O 3º ano da Escola Normal de Ouro Preto era apertado. Nossos professores eram os mesmos que lecionavam na Escola de Minas e no ginásio, nomes famosos como o do Dr. Alfredo Baeta Neves, o diretor da Escola, Dr. Viana do Castelo, Dr. Emílio de Lima, Sr. Rosalino Ponciano Gomes, célebre professor de Português, Dr. Afonso Costa Cruz, de Francês.
(...)

PATUSCADA DE ESTUDANTES

Algumas das pessoas que nos acompanharam em excursões a Ouro Preto, ao verem aquele mundão de repúblicas de estudantes, perguntavam-se os rapazes do meu tempo eram dados a patuscadas como os rapazes de agora.
Em Ouro Preto, as famílias sempre fecharam os olhos às travessuras dos estudantes. Conheço várias que deixam muito pra trás a travessura dos estudantes que moravam na Pensão Vermelha, fazendo soar a horas mortas o sino da Igreja de São Francisco de Assis, ali bem defronte, o que conseguiram amarrando um fio de náilon no badalo do sino e levando-a até as janelas do casarão, num alarma que fez muita gente sair do leito e correr até aquele local, pois em Ouro Preto, naquele tempo, sino tocando fora de hora era aviso de incêndio, e pasmou a todos, pois de pronto ninguém com a sua causa atinou. E o sino a badalar invisível, como se fosse tangido por almas do outro mundo. Esse fato foi sobejamente noticiado por jornais de Belo Horizonte, da época. Outro fato, mais recente, conta que vozes misteriosas cantavam fora de hora na Igreja do Rosário e que, descoberto, fez com que as assombrações de Ouro Preto ficassem de vez tão desacreditadas que as próprias assombrações não mais costumavam cobrir-se de lençóis, como certa vez, lá pelos idos de 1912, aconteceu em casa de Seu Manuelzinho de Lima, um amigo de minhas tias que morava na então Rua dos Paulistas. Eis o relato:

– D. Mariquinhas. Até agora eu estou sem saber o que pensar do fato que ocorreu esta noite. Calcule a senhora que eu tendo sabido, por fonte limpa, que os estudantes iriam dar uma batida no quintal lá de casa, para furtar os figos que estavam maduros, mandei a mesma pessoa avisar-lhes que os esperaria com a minha espingarda cheia de chumbo miúdo. E esperei. Trepei em cima de um abacateiro e, de dez horas da noite em diante, comecei a esperar. Lá pelas onze e meia, vi um vulto todo de branco, da cabeça aos pés, pular o muro. Deu uns dez passos e eu firme na minha tocaia. Logo em seguida, quando me dispunha a atirar, surge um segundo vulto, igual ao primeiro, que caminha e pára logo atrás desse, outro vulto que se posta atrás dos outros dois em fila e assim, sucessivamente, até que ficaram sete. Aí a fila começou a se mover para o meu lado! E dizia assim, em voz soturna:
- Quando éramos vivos, por aqui comíamos os nossos figos. Agora que somos mortos, por aqui andam os nossos corpos.
Vinham eretos para cima de mim. Desci de um pulo e corri para casa. Ao correr a espingarda disparou. Olhei para trás e eles parados estavam, parados ficaram, somente mudaram a ladainha:
– Companheiro da dianteira, quem é o vulto que vai assim nesta carreira?
O da dianteira, quase me pegando, surrurrou:
- Companheiro que está correndo, não vá assim se escafedendo!

Hoje, Ouro Preto, a cidade turística mais visitada do Brasil, com seus festivais de inverno, com gente de todos os quadrantes, tendo a recordar-lhe o passado apenas o casario colonial e seus monumentos, não tem mais fantasmas, nem se pode conceber que esse Ouro Preto aqui relatado existiu até com assombrações e poetas populares cantando suas cazuarinas e seu lugar. Eis um soneto, escrito pelo saudoso amigo Gumercindo Saraiva. Não é, certamente, um poema famoso, mas prova a transformação do Saramenha, onde outrora iam as famílias fazer seus piqueniques e onde o gênio de Américo Renê Gianetti criou a fábrica de alumínio que deu a Ouro Preto o primeiro impulso do progresso em que hoje vive. É desse Ouro Preto o soneto:

Como era triste o Saramenha outrora,
E as cazuarinas, ao sabor dos ventos,
Um gemido soturno de quem chora,
De quem vive em constante desalento.

Mas, ao raiar de alviçareira aurora,
Que rasga o manto azul do firmamento,
Um outro Saramenhaa eu vejo agora
No surto de maior empreendimento.

Não mais existe aquela inculta brenha
Em que jazia o velho Saramenha,
Do povo ouropretano, o ideal.

Após o temporal veio a bonança:
Saramenha, tão cheia de lembranças,
É hoje uma cidade industrial.



{Trechos retirados das páginas 17 (capítulo “Nossa Rua e Nossos Vizinhos”), p. 44-5 (Capítulo “Vacina Obrigatória e Perseguições Políticas”, p. 66-67 (Capítulo “O Colecionador de Pulgas” e p. 140-142 (todo o Capítulo “Patuscada de Estudantes”}

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